O PSIQUISMO NA MEDICINA TRADICIONAL CHINESA

O CORAÇÃO XIN (心) E O ESPÍRITO SHÉN (神)

Conforme descrito no Huángdì Nèijīng, um tratamento verdadeiramente eficaz com acupuntura deve começar pela atenção ao Shén (WANG, 2013). Na cultura chinesa a noção de  Shén foi se transformando ao longo dos séculos. Segundo Rochat de la Vallée (2019), o termo shén (神), frequentemente traduzido como “espírito”, carrega uma riqueza de sentidos que ultrapassa sua equivalência ocidental. No livro O Duplo aspecto do Coração,  Rochat de la Vallée (2020, p. 17) afirma:

O Shén não é uma entidade separada, mas um movimento da vida que penetra todas as partes do corpo, todos os órgãos, e que dá ao ser humano sua unidade interior e sua abertura para o Céu.

O ideograma 神 (Shén), geralmente traduzido como “espírito” ou “mente”, é composto pelo radical ⺭ (shì), associado ao sagrado, aos rituais e ao altar, e pelo fonema 申 (shēn), que significa “expressar” ou “estender”. Essa composição sugere que o Shén é o espírito que se manifesta, aquele que se expressa através da vida. Por isso, shén é associado ao coração, considerado o “soberano” dos órgãos, centro de lucidez, consciência e coordenação de todos os demais aspectos do psiquismo (ROCHAT DE LA VALLÉE, 2019).

Sendo assim, shén 神 une dois aspectos: de um lado, a referência ao alto, ao invisível que se manifesta no visível; de outro, o movimento de extensão e penetração no mundo. Dessa forma, o espírito shén é visto como aquilo que dá forma e sentido à vida, uma força que organiza e anima os fenômenos naturais e os seres humanos (ROCHAT DE LA VALLÉE, 2019).

O Coração (xīn 心), considerado o soberano do corpo, é a sede do Shén, princípio unificador da consciência. Segundo Wang (2013, p. 73), “o Coração é o senhor dos órgãos e o lar do Shén”. Ademais, no capítulo 54 do Ling Shu, Qi Bo afirma: “o espírito está guardado no coração fazendo com que ele induza a pensamentos e desejos, e isso mantém um homem” (WANG, 2013, p. 720). O coração é, portanto, o centro do psiquismo: “podemos considerar o coração como uma grande central emocional” (SIONNEAU, 2015, p. 90), quando está em harmonia, as emoções estão em equilíbrio e a consciência desperta. Quando apresenta alguma desarmonia, diversos sintomas podem surgir, tais como: delírio, insônia, alucinações, psicose dentre outros acometimentos emocionais (SIONNEAU, 2015).

Segundo a tradição taoísta, bem como os textos médicos clássicos chineses, o surgimento do espírito no ser humano está ligado o espírito original (yuán shén 元神) representa a dimensão mais sutil, universal e primordial do indivíduo. Ele é proveniente da realidade anterior à manifestação — o Wú Jí (無極) — e está em sintonia com o Dao (道), a fonte suprema onde tudo emerge. Esse espírito espera a união das essências dos pais — o jing do pai (armazenado no sêmen) e o jing da mãe (contido no sangue menstrual) — para então fixar-se no embrião. É nesse momento da concepção, quando o espírito se ancora, que se dá início à estruturação do ser (SIONNEAU, 2014). “Quando o Jing se transforma em Shen, surge a consciência” (WANG, 2013, p. 548). Pode se dizer então,  que “o Shén está na origem da vida espiritual do indivíduo e lhe permite realizar sua missão mais nobre, seu mandato celestial.” (SIONNEAU, p. 44, 2014).

Sendo assim, a partir da explicação a respeito do caractere Shén, faz-se necessário refletir sobre o significado de Shén Míng (神明):

Shén míng (神明), associa-se os espíritos (shén 神) ao caractere míng (明), que significa luz e esplendor, inteligência e perspicácia, fazer brilhar e iluminar, distinguir e entender (cf. Três yin e Três yang para o estudo do caractere míng 明) ROCHAT DE LA VALLÉE, 2019, p. 87).

Shén Míng (神明) é descrito como “o resultado da boa conduta da vida vinda de um coração iluminado e da perfeita adaptação do organismo às circunstâncias” (ROCHAT DE LA VALLÉE, 2019, p. 87). Essa clareza espiritual, que expressa a integração harmoniosa entre Céu, Homem e Terra, exige um estado interior de serenidade e desapego. Como afirma o Daodejing, “o homem sábio (…) esvazia seu coração.” (LAOZI, 2011), ou seja, cultiva um coração vazio, xīn xū (心虛), livre de desejos e expectativas, o que permite ao shén manifestar a clareza do espírito. De acordo com o Huángdì Nèijīng, a essência da acupuntura está sob a competência da inteligência espiritual — Shén Míng — tanto na intervenção do médico quanto no objetivo último do tratamento. Ao equilibrar os Sopros, espera-se que o resultado seja a clareza do espírito:

Por essa razão, todo tratamento deve chegar até os espíritos, o que significa que um tratamento só resulta em cura se o paciente efetua nele mesmo uma transformação, se faz um suficiente retorno a ele mesmo, à sua verdadeira natureza, se ele recebe e aceita um pouco mais os espíritos nele (ROCHAT DE LA VALLÉE, 2019, p. 82).

Em suma, o estudo da Medicina Chinesa e a prática clínica da acupuntura capacita o profissional a acompanhar, com discernimento e presença, os processos de transformação vivenciados por seus pacientes. Ao equilibrar e harmonizar os excessos e deficiências dos sopros, é possível favorecer um estado de maior equanimidade e clareza mental — condição necessária para que o próprio paciente possa, conforme afirma Rochat de la Vallée (2019, p. 82), “fazer um retorno a si mesmo, à sua verdadeira natureza”.

Nesse sentido, quando o tratamento chega até os espíritos (os Cinco Espíritos associados aos órgãos Zang, que são como reguladores psicofisiológicos), o paciente pode efetuar um retorno para dentro de si e, assim, promover transformações em sua vida, condição fundamental para nortear a conduta em harmonia com os princípios do Yin-Yang. De acordo com o primeiro capítulo do Su Wen, “a maneira de conservar a saúde dos antigos consiste em nortear o comportamento de acordo com os princípios do Yin Yang” (WANG, 2013, p. 25). Essa forma de viver, orientada pela observância das leis naturais, é considerada a base para uma vida longa e saudável, tanto no aspecto físico, quanto no aspecto psíquico.

OS CINCO ESPÍRITOS WU SHÉN (五神), AS EMOÇÕES E OS DESEQUILÍBRIOS EMOCIONAIS 

Os cinco espíritos (五神, wǔ shén) estão associados aos cinco movimentos da natureza, às quatro direções e ao centro, sendo por vezes descritos como cinco soberanos míticos. No contexto da medicina chinesa, essa expressão designa a manifestação diferenciada do espírito nos cinco órgãos zàng, indicando que o espírito deve ser compreendido com uma força vital que se distribui e se expressa de maneira específica em cada órgão, de acordo com a sua natureza e função (ROCHAT DE LA VALLÉE, 2019).

De acordo com Rochat de la Vallée (2019), o Coração é central e os demais espíritos são compreendidos como desdobramentos e extensões de sua ação, cada um associado a um záng específico e às suas funções energéticas. No Pulmão, o espírito é denominado Pò, relacionado à dimensão física, instintiva e somática. No Fígado, manifesta-se como Hún, ligado à imaginação, à criatividade e à alma etérea. No Baço, assume a forma do Yì, a intenção e o pensamento reflexivo. Nos Rins, aparece como Zhì, representando a vontade.

Na tradição chinesa, Hún (魂) e Pò (魄) representam duas faces complementares da alma humana. O Hún está ligado ao Céu e expressa a dimensão celeste do espírito: é sutil, ascendente, e se manifesta na imaginação, sensibilidade, consciência espiritual e nos sonhos. Já o Pò está associado à Terra e à materialidade: fixa-se no corpo, dirige as funções sensoriais e instintivas, e está relacionado à vitalidade orgânica e aos impulsos que sustentam a vida física (ROCHAT DE LA VALLÉE, 2019). De acordo com Sionneau (2015, p. 69), “o Pò é o brilho do metal do shén, descendente, “densificador”, separador. É a manifestação mais material, mais terrestre da consciência”.

O espírito Yì (意) é traduzido como propósito ou intenção, o ideograma de Yì expressa a capacidade de elaborar e aplicar pensamentos com clareza, indicando direção do pensamento. Em termos médicos, Yì está relacionado à atividade do Baço-pâncreas, responsável por organizar o conteúdo da mente, processar e sustentar a coerência da consciência (ROCHAT DE LÁ VALLÉE, 2019). “Yi pode ser chamado de consciência mental e coordena as funções dos outros espíritos (Pò, Hún e Zhì) para que o shén possa se manifestar em toda a sua plenitude” (SIONNEAU, 2015, p. 40).

O espírito Zhì (志) é associado à vontade. O ideograma de Zhì combina a ideia de broto, de algo que emerge de uma base profunda. Nos textos clássicos, a vontade é compreendida como a ligação entre o Céu anterior e a vida presente, e por isso está relacionada à capacidade de manter um rumo apesar das circunstâncias (ROCHAT DE LA VALLÉE, 2019).

É possível afirmar que “os chineses reconheceram a importância das emoções na saúde e na doença desde a antiguidade” (CHEN, 2022, p. 235). Nesse sentido, “os papéis das emoções nas análises médicas da loucura não devem ser negligenciados” (CHEN, 2022, p. 235). Cada Záng, quando em harmonia, contribui para a vitalidade do ser; quando em excesso ou deficiência, gera distúrbios no corpo e nas emoções, comprometendo o Shén. De acordo com Rochat de la Vallée (2019):

Uma emoção 情, é o Coração 心 + o verdejar da vida que se desenvolve naturalmente no seu ardor juvenil 青 (…) Se o coração fica calmo e sereno, puro e claro, a fidelidade a ordem natural não é comprometida; caso contrário as disposições fundamentais pervertem-se em emoções patológicas (ROCHAT DE LA VALLÉE, 2019, p. 100).

De acordo com o capítulo oito do Líng Shū, intitulado Běn Shén (本神, “Raiz do Espírito”),  “o sofrimento excessivo lesa as vísceras internas, fazendo com que as atividades funcionais da energia vital se tornem exaustas, gerando a morte do paciente” (WANG, 2013, p. 549). É fundamental ressaltar que os desequilíbrios de ordem emocional, na Medicina Chinesa, estão sempre integrados às manifestações fisiológicas do corpo (SIONNEAU, 2014), “essa visão explica as emoções em um típico holismo corpo-mente na medicina chinesa antiga”  (CHEN, 2022, p. 236).

No Huángdì Nèijīng são descritos os diversos desequilíbrios associando as emoções aos órgãos zang, indicando como cada afecção do espírito pode comprometer as funções fisiológicas e energéticas do organismo. Assim, os clássicos afirmam que a raiva prejudica o Fígado, a alegria prejudica o Coração, a preocupação prejudica o Baço, a tristeza prejudica o Pulmão, e o medo prejudica os Rins (WANG, 2013). Ou seja, “se qualquer uma dessas cinco emoções atinge um estado extremo, as funções de seu órgão visceral correspondente — ou seja, o Fígado, o Coração, o Baço, os Pulmões e os Rins — também serão prejudicadas” (CHEN, 2022, p. 236).

O coração é a sede do Shén, o centro regulador das emoções, responsável por comandar todos os Wu Shén (SIONNEAU, 2015). “A alegria excessiva causa a dispersão da energia que não pode mais ser armazenada” (WANG, 2013, p. 549). Quando em desequilíbrio, a plenitude pode provocar uma alegria desproporcional com risos incessantes ou sem razão (…) Um vazio do coração pode provocar a tristeza (ausência de alegria)” (SIONNEAU, 2015, p. 90).

De acordo com Sionneau (2015, p. 110), “se o coração mantém o “qi do Espírito”, é o fígado que favorece a circulação fluida dos mesmos”. Em caso de excesso da função de circulação do qi do fígado, pode ocorrer irritabilidade, impaciência, sonhos abundantes e, em casos graves, comportamento maníaco (SIONNEAU, 2015).

Em relação ao Pulmão,  “a melancolia excessiva causa o impedimento e a estagnação das atividades funcionais da energia vital” (WANG, 2013, p. 549). De acordo com Sionneau (2015, p. 70), “a tristeza e a melancolia bloqueiam a função de difusão/descendência do pulmão, o qi estagna e se transforma em calor. Este calor consome o qi”.

No Baço, “as preocupações e inquietudes quando não eliminadas, lesam o yì, o yì ferido ocorre a desordem, os quatro membros não podem mais ser erguidos” (WANG, 2013, p. 550). “De maneira geral, sabemos que o excesso de pensamento, ruminação mental, inquietude, preocupações, ferem as funções do baço e podem estar na origem de muitas doenças” (SIONNEAU, 2015, p. 41).

Os rins abrigam a emoção do medo que, em equilíbrio, “é o temor e a prudência bem-vinda, que fazem medir as consequências de uma ação” (ROCHAT DE LA VALLÉE, 2019, p. 110). No entanto, quando em desequilíbrio, promove “o desabamento sem contenção, a descida sem controle” (ROCHAT DE LA VALLÉE, 2019, p. 110).

Sendo assim, conclui-se que as desordens emocionais podem se manifestar sempre em correspondência com os órgãos. A inquietude, a agitação mental e a insônia são manifestações típicas do desequilíbrio do Coração, sede do shén; a tristeza profunda, a melancolia relacionam-se ao Pulmão e à perturbação do Pò; a preocupação excessiva, a ruminação mental e a fadiga cognitiva indicam distúrbios do Baço-Pâncreas e do espírito Yì; a raiva explosiva e os comportamentos impulsivos refletem a agitação do Hún, vinculado ao Fígado; e o medo, por sua vez, relacionado ao Rim e ao Zhì, pode se manifestar como paralisia frente à vida e enfraquecimento da vontade (SIONNEAU, 2014).

Artigo escrito por: Gabriel Simon Garib. Psicólogo (UEL), especialista em Acupuntura (ABA), professor de Chi Kung e Tai Chuan da Família Yang. Idealizador do Instituto Mãos de Nuvens.

REFERÊNCIAS

WANG, Bing. Princípios de medicina interna do Imperador Amarelo. Tradução de José Ricardo Amaral de Souza Cruz. Revisão técnica de Olivier-Michel Nieperentz. São Paulo: Ícone, 2013.

SIONNEAU, Philippe. A essência da medicina chinesa: retorno às origens. Livro 2. Tradução de Silvia Ferreira. São Paulo: EBMC, 2015.

ROCHAT DE LA VALLÉE, Élisabeth. 101 Conceitos-chave da Medicina Chinesa. Tradução: Jean-Pierre Bernadou. São Paulo: Editora Ínverso, 2019.

SIONNEAU, Philippe. A essência da medicina chinesa: retorno às origens. Livro 1. Tradução de Silvia Ferreira. São Paulo: EBMC, 2014.

ROCHAT DE LA VALLÉE, Élisabeth. O Duplo aspecto do Coracao