UMA BREVE HISTÓRIA DA “LOUCURA” NA MEDICINA CHINESA
PERTURBAÇÕES MENTAIS- DIAN KUANG (癫狂)
Antes de adentrar no conceito de Diān Kuáng, faz-se necessário contextualizar brevemente o panorama no tratamento dos distúrbios emocionais ao longo da história da Medicina na China. Para além do tratamento com acupuntura e fitoterapia, alguns médicos, em seu intento de buscar meios hábeis para lidar com os desequilíbrios emocionais, desenvolveram abordagens que incluía o uso da chamada “cura pela fala”:
Esse tratamento, por meio da manipulação emocional e de “cura pela fala”, referia-se ao princípio de “superar um estado emocional por outro” (yi qing sheng qing 以情胜情), que originalmente derivada da antiga doutrina do Clássico Interno. O médico mais habilidoso nesse tipo de contraterapia emocional — ou “terapia por afeto oposto” — parece ter sido Zhang Congzheng 張從正 (1156–1228). Suas notáveis artes curativas de catarse emocional foram seguidas por vários casos de sucesso no final do período imperial, e inúmeros registros aparecem em textos médicos e na literatura popular (CHEN, 2022, p. 238, apud RUMEN SHIQIN in ZIHE YIJI, 3.109; SIMONIS, 2010, p. 88; CHEN, 2014, p. 42–45).
Outro exemplo são os tratamentos voltados para as “feridas internas” (neishang 内伤), em que “se acreditava que o médico deveria, antes de qualquer intervenção, explicar detalhadamente a origem da doença ao paciente, a fim de evitar seu agravamento” (CHEN, 2022, p. 238, apud SIMONIS, 2014, p. 68–69).
Esses registros evidenciam a diversidade de abordagens terapêuticas empregadas em diferentes períodos da história da medicina chinesa. Práticas que envolviam o uso da palavra e a manipulação emocional eram, em geral, bem aceitas, embora não fossem tão amplamente utilizadas quanto a fitoterapia, acupuntura e outras intervenções tradicionais (CHEN, 2022). Ainda que não constituam o foco central do presente artigo, a menção a essas práticas se justifica pela relevância histórica de tais estratégias clínicas com objetivo de tratar os desequilíbrios psíquicos, a partir dos referenciais da Medicina Tradicional Chinesa. Esse panorama oferece um contexto importante para compreender como os antigos médicos chineses abordaram as manifestações psíquicas mais severas, como o Diān Kuáng.
Segundo Chen (2022), Diān Kuáng (癲狂) era utilizado para descrever estados de desorganização comportamental e emocional que, embora por vezes se aproximem de quadros descritos pela medicina moderna, seguem uma lógica própria. Essas “enfermidades raramente significavam uma doença mental isolada, no holismo corpo-mente, já que a síndrome psíquica geralmente vinha acompanhada de uma condição somática” (CHEN, 2022, p. 239). De acordo com Rochat de la Vallée (2019, p. 89):
Diān Kuáng (癲狂) abrangem então todos os tipos de loucuras, desde o mais yin até o mais yang. Podem associar-se de várias maneiras ou suceder-se no curso do tempo; isto é então a demência maníaco- depressiva.
O termo diān é construído a partir do radical da cabeça (页) e de elementos ligados à autenticidade (真), era compreendido como uma desordem yin, relacionada a retraimento, torpor, rigidez, tristeza profunda e sintomas convulsivos ou vertiginosos, frequentemente conectados a frustrações emocionais e à estagnação do qi (ROCHAT DE LA VALLÉE, 2019). Em sua fase inicial, o distúrbio do tipo Diān é descrito da seguinte forma: “o paciente parece estar infeliz, seus olhos estão vermelhos e ficam olhando fixamente para frente. Quando o mal é severo, o paciente terá a sensação de opressão no peito e fica inquieto” (WANG, 2013, p. 618). No caso de manifestações diān “as orientações do tratamento com acupuntura se concentram nos canais da mão: taiyang, yangming e taiyin, com destaque para o uso da sangria” (WANG, 2013, p. 618).
O termo kuang é formado por elementos gráficos que evocam imagens de fúria, agressividade e descontrole — o radical do cão (王), sinaliza uma desordem fora de controle. Kuáng (狂) então era associado ao excesso de yang, manifestando-se por hiperatividade, agressividade, comportamento desinibido e delírios de grandeza — sintomas como rir sozinho, gritar, despir-se ou escalar telhados simbolizado pela imagem de um cão raivoso (ROCHAT DE LA VALLÉE, 2019). No capítulo 22 do Ling Shu, são descritos os comportamentos relacionados a Kuáng: “No início das manias, o paciente tem primeiro um humor triste, esquece as coisas com facilidade, zanga-se facilmente, assusta-se com facilidade, e a doença é causada por melancolia e fome” (WANG, 2013, p. 619). Nesse caso, Huang Di sugere o seguinte tratamento:
picar primeiro os acupontos do Canal Taiyang da Mão e os do Canal Yangming da Mão e deixar de picar quando a compleição do paciente tiver voltado ao normal; picar então os acupontos do Canal Taiyin do Pé e os do Canal Yangming do Pé (WANG, 2013, p. 619).
O texto segue com a seguinte descrição:
No começo das manias, o paciente dificilmente pode dormir, e não fica com fome, e se considera uma pessoa brilhante e sábia, um interlocutor brilhante, uma pessoa nobre e de talento, sempre pronto a repreender os outros, não importa se de dia ou de noite (WANG, 2013, p. 619).
Neste caso, orienta-se a “picar os acupontos dos Canais da Mão, Yangming, Taiyang e Taiyin e os acupontos do Canal Shaoyin sob a língua” (WANG, 2013, p. 619-620). Ao longo do capítulo, torna-se evidente que as manifestações Diān e Kuáng não são tratadas como categorias fixas, mas como expressões do desequilíbrio do Qi, são utilizadas estratégias específicas de acordo com a natureza do desequilíbrio no momento do quadro e condição do paciente.
A análise das características de Diān Kuáng, bem como seu tratamento na acupuntura, revela sua lógica enraizada na cosmologia e fisiologia energética da Medicina Tradicional Chinesa. O uso da acupuntura, com ênfase na escolha dos canais e pontos conforme a natureza do desequilíbrio — se mais yang ou mais yin —, evidencia a sofisticação e, ao mesmo tempo, a simplicidade para lidar com tais estados de sofrimento emocional como parte integral da fisiologia.
Contudo, vale destacar que os próprios textos clássicos reconhecem os limites do tratamento em casos mais graves, como quando se afirma que “se o paciente vomitar muita espuma, o que indica exaustão da energia, o mal não pode ser curado de forma alguma” (WANG, 2013, p. 619) ou ainda que, “quando se contrai o mal diān e a instauração da doença é do tipo maníaco, não pode ser curado de forma alguma” (WANG, 2013, p. 619). Tais afirmações revelam que, embora os médicos antigos dispusessem de recursos terapêuticos, também reconheciam a complexidade desses quadros e, em certos casos, a impossibilidade de reversão do processo patológico, a partir das ferramentas existentes na época.
Além das especificações de tratamento para Diān Kuáng segundo as diversas sintomatologias supracitadas, torna-se indispensável considerar a centralidade do Coração — a morada do Shén — no tratamento. Considerado o soberano entre os órgãos, o Coração é descrito nos clássicos como o centro regulador das emoções e o comandante da consciência, responsável por coordenar os demais aspectos do Espírito: Yì, Hún, Pò e Zhì. Por isso, em qualquer intervenção voltada ao sofrimento psíquico, é fundamental regular o Sopro do Coração (SIONNEAU, 2015).
Além disso, conforme as particularidades de cada caso, cabe ao profissional discernir quais outros meridianos se encontram em desequilíbrio, utilizando-se das diversas ferramentas diagnósticas da Medicina Tradicional Chinesa, que, segundo Cordeiro (2021), são: a observação da língua, a palpação do pulso a análise do padrão energético, dentre outros. Tais ferramentas servem de base para o reequilíbrio energético que promovem a clareza de Espírito, condição indispensável para o tratamento, “por essa razão, todo tratamento deve chegar até os espíritos” (ROCHAT DE LA VALLÉE, 2019, p. 82).